sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Poema haragano (de Alma Welt)

Por ser filha do pampa e de meu pai
Eu pude amar, ser poeta e ser poesia
Que o peão já lembra e se extasia
Se pelo prado canta enquanto vai.

Sim, eu ouvi mais de um gaudério
Entoar um canto em sua sela
Em que reconheci o meu mistério
Ou dele a inspiração que me revela.

Pois quando o povo canta um verso teu,
Então está tudo certo, e podes rir:
Eis que o poeta atingiu seu apogeu.

E preciso é manter o diapasão
Para deixar mais música fluir
Como haragano quente no verão...


02/10/2006

domingo, 28 de setembro de 2008

Nobrezas (de Alma Welt)

(203)

Vinha um cavaleiro pela estrada
Que meu pai acompanhava desde longe,
Mas não foi buscar a espingarda
Nem ficou imóvel como um monge.

Agitou-se e me disse emocionado:
"Alma, é o Rogério, meu amigo,
Reconheço-o pelo seu jeito montado,
Como se fora cavaleiro antigo."

"Ninguém monta mais como o Rogério,
Que denotava a sua nobreza
Tanto sobre a sela quanto à mesa."

"Alma, peça pra Matilde e pro Galdério
Prepararem estrebaria e almoço
Que precisamos ser dignos do moço."

08/11/2006

sexta-feira, 25 de julho de 2008

O claro e o escuro da Alma (de Alma Welt)

Amanhã verei meu ser refeito
E envolto em aura, libertado,
Serei o ser que sou, o ser eleito
De mim mesma, aceso, iluminado.

Farol na noite eterna de esperança
Ou sol no dia claro sempiterno,
O timbre escolhi eu desde criança
Ao escolher o amor, o bom e o terno.

Mas, bah! se o Cerro esfria e escurece
E pelas faldas onduladas de coxilhas
Do Jarau o minuano escorre e desce,

Da alma o lado escuro me fascina
Ao perceber o quanto, sim, ele me anima,
Esse contraste que produz as maravilhas!

(sem data)

Nota
Com o seu poder de criar ou de realimentar mitos, Alma parece dizer que o minuano nasce no Cerro do Jarau (vide A Salamanca do Jarau, de João Simões Lopes Neto) e quando este escurece e esfria, escorre pelas encostas e corre pela pradaria, como um desbordamento do lado escuro do mundo. (Lucia Welt)

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Reencontrando o general (de Alma Welt)

Amarrei minha montaria no mourão
Adentrando então a estância estranha.
No peito eu sentia o coração
Pulsando como os palpos de uma aranha

Que aguardasse a si mesma como presa
No centro de uma teia que era o mundo.
E assim eu caminhava muito tesa,
A sentir que o momento era profundo.

Então me vi diante da varanda
Do herdeiro de meu Netto general,
Que tirou o chapéu, como se manda

E mostrando os cabelos cor de nata
Disse: "Voltaste, minha princesa, meu Graal,
Que te espero, há muito, desde el Plata."

(sem data)

terça-feira, 22 de julho de 2008

O umbu e o vento ( de Alma Welt)

Verdes anos verde este meu pampa
Eterno velho e novo a cada dia
Quero plantar-me aqui não numa campa
Nem como aquele umbu que renascia

Mais forte e sinistro após cortado
Diziam os que o quiseram esquecido
Pois que como forca fora usado
E logo o acreditaram fenecido.

Mas umbu frondoso e sobranceiro
Reinando na coxilha qual peão
Montado no seu pingo, ou no pampeiro

Que varre estes prados infinitos
Soprando como poderoso orgão
No sacro espaço de singelos ritos.

19/12/2006

Pietà sulina (de Alma Welt)

Vinha o gaúcho troncho em sua sela
Ferido por adaga gravemente
Na mão direita a rédea como vela
A outra mão a segurar o rubro ventre.

E estacando o seu pingo emfim cedeu,
Fez um aceno vago e foi caindo
Nos braços do Galdério que acorreu
A ampará-lo como a um guri dormindo.

E enquanto a alma ia sem adeus
Eu gravei a cena em minha retina
Como uma Pietà leda e sulina

Pois agora já estava entre os seus
Como o outro naquela estampa fina
Fixando a morte insólita de um deus.


(sem data)

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Conluios da Noite (de Alma Welt)

Elevam-se na noite os murmúrios
Das conspirações que aqui houveram
Nos tempos farroupilhas, e os conluios
Que nos ecos desta casa ainda prosperam.

E ouço: Canabarro se rebela
Contra Bento nosso grande comandante
Enquanto o bravo Netto se revela
O mais fiel amigo doravante.

Mas bah! são as prendas que os inspiram
Com seu doce pranto derradeiro
Na paixão ardente em que deliram,

Juntas, pelos quartos, e ao fogão
Cujas cinzas liberam um rico cheiro
Que, alta noite, invade o casarão...

02/10/2006

quinta-feira, 3 de julho de 2008

De tangos e fandangos (de Alma Welt)

Andei pelo bosque esta manhã
Para colher amoras e até
Mesmo umas florzitas, no afã
De enfeitar a mesa do café

Pro desjejum dos hóspedes, uns gringos
Que dormem cansados do fandango
Que fizemos em honra dos amigos
Vindos de outros pagos com seu tango.

Bah! Como foi belo ver os pares
Evoluirem naquela perfeição
De argentinos passos sem azares!

Mas Rôdo a honra nos salvou
Ao fazer cantar o seu tacão
Que na lança estendida nem relou...*

17/07/2006


Nota

* ... que na lança estendida nem relou- Alma se refere à "chula" que o nosso irmão Rodo dança de maneira admirável desde guri.(Lucia Welt)

Chula- Dança folclórica do Rio Grande do Sul, executada por homens e cuja coreografia, com muitas sapateadas, exige grande habilidade do dançarino. É acompanhada de palmas, violão, cavaquinho, pandeiros e castanholas.(1)
A chula tradicional é dançada da seguinte forma: Dois dançarinos ficavam frente a frente tendo entre si uma lança de quatro metros de comprimento. Cada um dos oponentes executava uma seqüência de difíceis passos coreográficos indo até a extremidade oposta da lança e retornando ao seu lugar de origem.(2)
1. Sociedade e Cultural - Enciclopédia Compacta Brasil - Larousse Cultural - Nova Cultural - 1995
2. Texto extraído do site do Grupo de Danças Porteira de Guapos: www.nh.conex.com.br/user/apollo

segunda-feira, 30 de junho de 2008

A fronteira (de Alma Welt)

Venham por aqui, ó Lucia, ó Rodo
E também a Solange, o bando todo...
É uma senda estreita no final
Que leva à Salamanca do Jarau!

É, sim! Eu descobri aqui na estância
O tesouro do gaúcho, é vero! juro!
Na entrada, sei, é um pouco escuro
Qu'isto não é nenhum jardim da infância.

Mas olhem, prometam, não espalhem,
A Mutti não pode saber disso,
E as preces da Matilde nada valem

Se formos proibidos de brincar
E descobrir o mundo fronteiriço
Que há além das uvas no lagar...

11/05/2006

O últimos brindes (de Alma Welt)

Por ser filha amada de meu pai
Eu pude acreditar em ser poeta,
E suspeito que o mundo um dia vai
Fruir e degustar a predileta

Nascida sob estrela de abastança,
Interior, quero dizer, e dadivosa
Meu desejo é desbordar-me generosa
Como o cálice servido na festança

Quando o "gáltcho" grato na querência
Começa a discursar aos seus compadres
E a mão já lhe treme em conseqüência

Pois os brindes brotam já em borbotões,
Junto com as juras, aos confrades,
De veraz fidelidade entre peões...

19/12/2006

domingo, 15 de junho de 2008

Meu Pampa verdadeiro (de Alma Welt)

Para além do meu jardim e do vinhedo
Começa o meu pampa verdadeiro
Bem mais que de um mar o arremedo,
As ondas em que o “gaucho” é marinheiro:

As coxilhas ondulantes, femininas,
Semeadas de intermitentes frondes
Dos umbus que coroam as colinas
Onde senta o peão mirando os “ondes”

Para logo remontar o fiel pampa
A galope desatado atrás da rês
Ou as bolas girando, aquelas três

Pra bolear as pernas de uma ema,
Ou o laço enroscar num par de guampa
Como quem lança o fecho de um poema.

04/12/2006

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Meu evangelho do Pampa (de Alma Welt)

Por esta manhã que me acordou
Eu sigo pela senda renovada
Que me confirma onde Amor brotou
Quando dei por mim, tão deslumbrada

E era a guria apaixonada
Por tudo e por todos nestes prados
Em que renasci, pois transplantada
Viera de uma terra de emigrados,

Lá do Novo Hamburgo, Hamburgo Velho
Que a mim me dera só germanidade
Faltando do meu Pampa o evangelho

Que consiste na amplidão da herdade
E o meu senso de vôo (bah! não riam!)
Em que corpo e alma se uniriam...

16/11/2006

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Pampianas brincadeiras (de Alma Welt)

Deliciosas manhãs deste meu prado
Em que ponho-me a correr e perseguir
Alguns desgarres do meu gado
Apenas pra cansar e divertir!

E me vejo ainda guria com meu Rôdo,
Quando este a girar boleadeiras
Tentava derrubar, ah! ledo engôdo
Uma rês ou uma ema, em brincadeiras,

E logo aquele dia, em que afinal
Lançou o artefato em minhas pernas
Quando eu fugia também, como animal

Que ao cair, de quatro, muito brusco
Penetrou-me, mas com palavras ternas:
"Eis a novilha que na verdade busco!"

_____________________________

Nota da editora

Sobre este episódio explicitamente erótico, um tanto picaresco, há uma variante, um outro soneto pampiano entitulado "A vitela" , o que sugere que se trata de fato ocorrido mesmo com a Alma em sua adolescência com Rôdo, e que a emocionou ou divertiu. Vou transcrevê-lo aqui:

A vitela (de Alma Welt)
(119)

Entre minhas lembranças da infância
Está aquele dia inusitado
Em que no prado e à distância,
Fui laçada e derrubada feito gado

Pelo meu irmão que quis mostrar
Que havia aprendido a laçar:
Enroscada pelos pés me vi caída,
Nem assim querendo dar-me por vencida.

Mas com o laço amarrou-me bem veloz
As mãos como se fora uma vitela,
Levantando meu vestido até a costela,

E estando eu de quatro como rês
Rasgou-me a calcinha pelo cós...
Haja soneto pra contar o que ele fez!

03/09/2006

terça-feira, 4 de março de 2008

Vinhedo amargo (de Alma Welt)

25

Havia aqui em nossa estância
Uma jovem peona colhedeira
Que amava um guri desde criança
Mas os pais a mantinham na coleira.

A verdade é que mesmo vigiados
Eles conseguiam se encontrar
Na hora da colheita ou dos cuidados
No meio do vinhedo, para amar.

Mas morto com um tiro no seu peito
Eis que o rapaz é encontrado
E o pai da moça era o suspeito,

Até que a guria tão sofrida
Revelou que outro era o culpado:
O irmão que a amara toda a vida.

O pastor sem remorsos (de Alma Welt)

24

Um jovem pastor aqui da estância
Resolveu se aproximar do casarão:
Não vira piscina em sua infância
E queria ver a filha do patrão

Nadando, como sempre, assim pelada,
E escondido, então, atrás da sede,
Ali fica por quase uma jornada,
Enquanto uma ovelha se escafede.

E quando afinal interpelado
Por quê e se não ia arrepender,
Já que uma ovelha até morreu

Ele com o olhar emocionado
Disse afinal, sustentando o meu:
"Eu mesmo já podia até morrer..."

04/01/2007

De facas e corações (de Alma Welt)

23

Meu pai tinha um peão na estância
Que parecia um anjo de bombachas:
Seu olhar ficara em sua infância,
Mas na cintura ostentava faixas

Que abrigavam a dura faca de peão,
E que ah! não deveria estar ali,
Pois foi ela que no tribunal do Juri
Condenou-o a dez anos de prisão.

E eu que vira o caso se enrolar,
Embora fosse uma guria idealista
Cheguei a conclusão nada simplista:

Que entre gesto, faca e os corações
Havia todo um mundo de razões
Qu'eu levaria a vida a desvendar.

02/01/2007

Perigos do não mirar (de Alma Welt)

22

Dedicarei ao Galdério uma loa
Por peitar um peão desembainhado,
Que ao que parece o queria degolado
Por ser fiel amigo da patroa.

Então, assim que estava desarmado
Interpelei o peão severamente:
"Por quê estás assim tão exaltado,
Não vês que o Galdério é boa gente

E repete as ordens que lhe passo?
Como a todos, pra que ninguém se fira
Acaso não te dou o mesmo espaço?

E o gaúcho envergonhado revelou:
"Não suporto saber que tu le mira
Nos olhos e os meus tu nunca olhou!"


(sem data)

As ausências do Galdério (de Alma Welt)

21

Galdério, factotum incansável,
Vem ultimamente se ausentando
Com a sua charrete indispensável
Nos tempos do Vati aqui reinando.

Então hoje cedo fui mais fundo:
"Galdo, me permite perguntar
O que tanto fazes lá no mundo
Onde "gáltcho" como tu não tem lugar?"

"Não foste tu mesmo que disseste
Que querias morrer sem mais deixar
A planura onde está tudo que preste?"

Mas o gringo sério logo emenda:
"Princesa, tenho ido alimentar
O peão de quem mi madre foi a prenda."


09/11/2006

De sombras e aromas (de Alma Welt)

20

As sombras do passado desta estância
Continuam a crescer e a ameaçar.
As noites geram medos e a ânsia
De uma antiga dívida saldar:

A do boche, o nosso avô Joachim
Que ao comprar a terra em desgraça
Deixou pros meus irmãos e para mim
Um patrimônio com peso de uma raça.

Aqui acamparam os farroupilhas,
Nesta mesa além do clã do Valentim
Sentou Bento Gonçalves com as filhas.

Sete mulheres deitaram-se nos quartos
E ainda sinto o cheiro do alecrim
E os gemidos, dos amores e dos partos...

05/12/2006

segunda-feira, 3 de março de 2008

Sendas farroupilhas (de Alma Welt)

19

Caminho pelas sendas farroupilhas
Que ainda se vêem aqui no prado,
E serpenteiam servindo como trilhas
Para os peões de hoje e nosso gado.

E me vejo de repente acompanhada
De visões dos nossos companheiros
Montados, zurzidos por pampeiros
A procurar a sua última invernada

Logo sofrida, espectral, penada
Pois que nunca houve paz impune
Pros que vivem e morrem pela espada.

Então volto ao casarão atormentada
Como alguém que a guerra ainda pune
Com os ecos da última emboscada...


14/01/2007

Episódio matinal (de Alma Welt)

18

Manhãs gloriosas desta estância!
Com a saia arrepanhada, entre coxilhas
Persigo eu, a rir, minhas novilhas,
Revivendo um prazer da minha infância.

Mas, bah! logo me vejo observada
Por um "gáltcho" sério e sisudo
Dos que não riem senão de madrugada
Quando em torno da chaleira podem tudo.

Então acerto o passo disfarçando
Como cabe à prenda ou filha de patrão
Deixando a barra do vestido ir ao chão

E faço um cumprimento de cabeça
Digno e sincero, esperando
Que a ordem universal restabeleça.

08/04/2004

______________________________________

Nota da editora

Este encantador soneto pampiano é, ao meu ver, um dos melhores testemunhos da capacidade da Alma de fazer poesia e crônica ao mesmo tempo, no espaço exíguo de 14 versos, captando sentidos e estórias sutis de mínimos acontecimentos, aparentemente triviais, que à maioria das pessoas passariam despercebidos. (Lucia Welt)

Noturno (de Alma Welt)

17)

Entre o casarão e o vinhedo
Está o jardim dos meus amores
Que de dia acolhe o folguedo
De guris e gurias entre as flores.

Mas nele eu navego em noite cálida
Sob a luz de uma lua espectral
Refletida e tornando-me mais pálida
Como pequena gôndola irreal

Que singra entre touceiras prateadas
Deixando rastro: cintilantes vagalumes
Companheiros de noturnas caminhadas

Sob a guarda do Negrinho e as Três Marias
Que ainda me protegem dos queixumes
Dos sonhos mortos e das fantasmagorias...

15/12/2006

Manhã (de Alma Welt)

16

Matilde, prepara-me o amargo
Que quero sair e pôr-me ao largo
Navegando ao vento na campina
Como nau que a branca vela empina.

A brisa a fluir no azul profundo,
Pode mais propício estar o mundo?
Quem foi que disse ser um sacrifício
A vida, o viver e seu ofício?

Coalhado de pássaros qual flores
A agitar-se como agitam-se os amores,
Olha aquele umbu ali ao sol!

Dá-me, Matilde, uma côdea de pão
Que vou a mastigar com o chimarrão
Enquanto examinas meu lençol!*

29/11/2006

Nota da editora;

Como alguns já perceberam por outros sonetos e crônicas, Matilde, nossa ex-babá, teimava em continuar vigiando a Alma, e até a examinar os lençóis de sua "princesa" para coibí-la de seu "pecado", pois tinha conhecimento, desde sempre, da relação da Alma com seu irmão. Minha irmã, espirito livre e cheia de senso de humor tratava Matilde com enorme carinho como a uma mãe devotada, embora um tanto superprotetora e até rabujenta. Nunca vi a Alma se aborrecer realmente com a Matilde. (Lúcia Welt)

A Abantesma (de Alma Welt)

15

Ó casarão da minha infância
E que me verá adormecida
No último sono, já sem vida,
Para ser a abantesma desta estância,

Por aqui onde vivi a fantasia
De ser mulher-poema e musa errante
Do meu bosque, do jardim, da pradaria
E de todo o meu pampa circundante

E quando estiver morta, que me vejam
A galopar sob o céu da Branca Via
Nua como em vida já se ouvia

Ou mesmo que não muito créus estejam,
Afirmem pra seus piás e filhas:
"Alma vagou esta noite nas coxilhas!"

18/01/2007

Nota da editora:

Fiquei pasma com este belíssimo soneto, e o achei profético, pois é realmente o que tem acontecido por aqui: Alma tem sido vista pelos peões e suas mulheres e filhas, tanto quanto por mim, acreditem vocês ou não. Seu espectro muito branco, translúcido, vaga pelo jardim, pelo pomar e pelas colinas, perdendo-se no bosque. Eu já o segui três vezes, e numa delas encontrei na praia da cascata, brilhando á luz da lua, o anel de prata de lenço de vaqueiro que serviu para a identificação de seu assassino. Mas isto é uma penosa história que fico devendo e contarei mais tarde aqui mesmo neste blog. (Lucia Welt

A primadonna ou a Ópera dos Pampas

17

As minhas pradarias vou cantar
Como nenhuma prenda já o fez,
Ser a guria pampiana que desfez
O mito da mulher feita pro lar,

Que incapaz de montar feito um peão
E laçar, lançar boleadeiras,
Ou comandar essas videiras,
Seria uma chinoca de patrão;

Sim, eu vou cantar mais alto,
Ser uma primadonna sem maus-tratos,
Cuja voz seria de contralto,

Nesta pampiana ópera divina
Pois o Grande Diretor fechou contratos
Somente para vozes como a minha.

13/11/2006

A dama da geada (de Alma Welt

16

Esta noite caiu grande geada
Num amanhecer quase europeu,
E vi a pradaria esbranquiçada
Como se fora neve e como eu

Que saí pela campina e evaneci.
"Branca sobre branco" diz Galdério,
Que rindo quis dizer que me perdi,
Pois que não me leva muito a sério.

Mas respondi no mesmo diapasão:
"Não me viste, ó peão, a cabeleira
Vermelha, produzindo aquela esteira

De cometa fiel nas pradarias?
Era eu, e por certo não sabias
Que era mulher, estrela-guia de peão..."

12/07/2006

Nota da editora:

Os leitores que me perdoem se me acham supeita, como irmã da poetisa, para emitir um juizo como este: creio que estou diante de uma obra-prima do soneto universal, em que pese o sabor regionalista típico da Alma nesta sua fase pampiana.

O Território Mágico (de Alma Welt )

15

Por uma senda do Pampa, invisível
Caminha o rebanho encantado
Para o território demarcado
Das Missões, onde o Sul é imperecível.

Ali, de noite, reunem-se os peões
Com suas bombachas, esporas e tacões;
As lanças farroupilhas ainda açulam
Imperiais que no sonho capitulam.

Anita é avistada, ah! tão bela!
E o bravo Giusepe se revela
O amante fiel e apaixonado

Que retorna ao Sul com sua nave
Para buscar do amor a própria chave
Que restou perdida neste prado...

15/01/2006

A Infanta (de Alma Welt)

14)

Muito viajei pelas cidades
Do mundo real e as da mente,
Europa e os reinos do Oriente
E os das lendas de antigas deidades.

Mas o Pampa, o Pampa é minha raíz...
Aqui vou mais longe ao galopar
E perco-me no mundo por um triz
E encontro meu espaço em pleno ar!

Bravos gáutchos* montados e em seus zelos
Tocam seus chapéus com os dois dedos
Ao verem-me correndo tão sem medos,

Infanta de meu reino, ou já rainha,
Meio louca, eu sei, soltos cabelos,
Mas ao passar saudada pela Vinha!

18/01/2007

Lendas do meu bosque (de Alma Welt)

13

O meu bosque reserva o seu segredo
Para quem tem olhos e ouvidos,
Poucos, na verdade, os escolhidos
Capazes de adentrarem-no sem medo.

Principalmente quando no crepúsculo
Principiam as fantasmagorias
E aquele vago lusco-fusco
Produzido por ocultas fadarias.

"Nada de bosque!" alertava a Matilde
"Que ali o malígno espreita
Tanto guria nobre como humilde."

"Conheci uma que sumiu e não mais vi
Para me contar que coisa é feita
Com aquelas que se agacham pro xixi..."

15/01/2007

Um sonho da Alma (de Alma Welt)

12

Decidi ser mãe mais uma vez
(há muito perdi uma criança...)
Nem que tenha que laçar como uma rês
Um peão, um macho, aqui na estância.

Mas caí na esparrela de contar
Meu plano para a pobre da Matilde,
Que só faltou com uma vara me açoitar,
Dizendo: " Bah! Como a rainha é humilde!"

"Mas não podes, tu tens que respeitar-te!
Não vás deitando com qualquer gaudério
Que podes com certeza machucar-te..."

"E depois, como livrar-te do infeliz,
Que deitar-te contigo, quem não quis?
E já temos alguns no cemitério!"

19/01/2007

A casamenteira (de Alma Welt)

11

Pintei-me nua com grande realismo,
Que ao ver a tela a Matilde até gritou:
"Guria, apaga tudo, isso é nudismo!
Já não basta viveres dando show?"

"Eu vejo que és nudista empedernida
E estás cada vez mais descarada,
Se eu fosse a tua mãe, a falecida,
Ia dar-te era mais muita palmada!"

"Eu sei, tu és guapa, mas te guarda,
Vai por mim, que sou casamenteira.
Quem quererá o que não se resguarda?"

"Se te escondes porfim te esquecerão
E haverá alguém que ainda não
Te viu pelada e pague entrada inteira..."

12/01/2007

Estórias de gaudérios (de Alma Welt)

10

Ontem caiu atroz tormenta
Sobre os campos e tetos da fazenda,
Relâmpagos que o povo ainda comenta
E um raio que começa virar lenda.

"Matou um novilho?"-um diz-“não, foi touro,
Não viste, tchê, aquele estouro?”
“Eu fui e vi sim a barrigada
Da rês, pela relva esparramada...”

“Bá, compadre, não me venha
Com conta de gaudério, te conheço.
Morreu somente um cão que desconheço,”

“Mas não importa, tchê, foi coisa brava,
O *Gaucho lá de cima desce a lenha
Quando encontra a porta com a trava!”

22/12/2006

Notas da editora:

* gaudério- (termo gauchesco) indivíduo
fanfarrão e sem eira nem beira.

..."o Gaucho lá de cima'- pronuncia-se "gáltcho", à maneira
dos "castelhanos" (uruguaios e argentinos). Alma coloca
na boca de seus personagens essa maneira saborosa
e regionalística de se referir a Deus, o que, na verdade, não é comum.

De pássaros e plumas (de Alma Welt)

9

Uma vez, quando pequena, na varanda,
Eu vi aproximar-se um cavaleiro,
Estávamos no mês de Fevereiro
E chovia, assim, como Deus manda.

E ele vinha, com a viola, encolhido
Como pássaro molhado, e sem amigo.
Um gaúcho não ereto, mas transido,
Apeando e pedindo sopa e abrigo.

Meu pai, pela viola o fez entrar,
O levou, antes da ceia, pro chuveiro
Pra despir e com água quente se banhar.

E eu, piá, na porta do banheiro
Fiquei, ali, fascinada, a observar
Aquela ave novamente se emplumar...

18/12/2006

A minha casa, perdida (de Alma Welt)

8

A minha casa, perdida neste prado,
Brota do solo como se fora encantada,
O limo já recobre seu telhado
E as heras a põem meio assombrada.

E se as nuvens recobrem o meu pampa
E começa o tropel da trovoada
Eu sinto como se abrisse a tampa
Da caixa da Pandora atormentada

Que sou, esta Alma dividida
Entre a paixão da Arte e da Vida
A vagar pelo jardim anoitecido

Enquanto o Minuano não me venha
Ao encontro, buscar-me, e como senha
Entoar sussurrante o seu gemido...

18/12/2006

Quando chega o verão na pradaria (de Alma Welt)

7

Quando chega o verão na pradaria
Eu desfruto ainda o mesmo encanto
Pela revoada e a alegria
Dos pássaros, insetos e seu canto.

O verde agradecido, triunfante,
As árvores no plano ou nas coxilhas,
E salpicando a relva já fragrante,
As flores, as pequenas maravilhas.

E o peão singrando a todo pano
Atrás de um novilho desgarrado
Como a gota que faltava no oceano

Da boiada imensa, mar de guampa
Que se move como a maré do prado,
Ou como branca espuma do meu Pampa.

12/12/2006

A Grande Noite Austral (de Alma Welt)

6

Noite sobre a estância e meu jardim...
Desmesurada, intensa, apaixonada!
Por tê-la em ressonância dentro em mim,
Esta noite é maior, mais exaltada.

Grilos, sapos, dançam pirilampos
Em alegre fandango nestes prados;
Quero voar sonhando sobre os campos
Até o *castelhano e seus costados!

Ali os *gauchos sem acento me saúdam
E me convidam ao mate em seus *bivaques,
Cofiando seus pontudos cavanhaques...

E com eles vou mais longe, *rumo austral,
Me escancham na sela e se me *grudam
Pelos pagos num galope espectral!

20/12/2006

Notas da editora:

*..."o castelhano e seus costados"- Alma se refere
à fronteira do Uruguai.

* ...gauchos sem acento- No pampa uruguaio e argentino,
gaúcho se pronuncia "gáltcho".

* ..."seus bivaques"- Alma se refere assim às fogueiras noturnas de acampamento, onde a chaleira do mate ferve.

*... "rumo austral"- em direção ao sul, ao pampa uruguaio.

*... "se me grudam"- Alma quer dizer que,
"escanchada"(montada como homem)na sela,
na frente do cavaleiro, este a agarra por trás.

*... "pelos pagos"- por regiões remotas, desconhecidas.

O Fanal da Pradaria (de Alma Welt)

5

Verde Pampa de minha terra natal
Onde a alma navega entre as coxilhas
Aos olhos do peão como um fanal
Sobre mar pleno de encantadas ilhas!

Galopes infinitos, plenitude,
Integração cavalo e cavaleiro
O antigo ideal de completude:
O centauro uno e derradeiro...

Como eu mesma, peona e poetisa
Dualidade também de que me orgulho
Fiel pagã e grã-sacerdotisa

Desta porção extrema do país
De cuja saga imersa num mergulho
Eu volto como santa e meretriz!

24//11/2006

O Negrinho do Pastoreio (de Alma Welt)

4

Uma vez cavalguei nua pelo prado
E longe fui demais, tão imprudente!
Então meu pingo exausto, esgotado,
Negou-se a retornar, o inocente.

Ali estava eu longe da estância,
Nua e com frio, temerosa,
Perdida do meu pampa cor-de-rosa,
E despojada, retornada à minha infância.

E então, patética, febril e quase vômica
(não fora bela, eu sei, seria cômica)
Encontrei o meu negrinho pastoril:

Um menino negro como a noite
Que me deu sua camisa, um pernoite,
E sua escolta na manhã primaveril...

08/12/2006

Buenas falas (de Alma Welt)

3

O "gaucho" velho entrando se achegou
Trazido por meu pai à nossa sala
E pegando o meu queixo me olhou
Fundo nos olhos antes desta charla:

"Buenas, tchê, que prenda rareada!
Esta guria vai falar por todos nós,
Não somente pelos pais e os avós
Mas por todo o vinhedo e a peonada."

"Mas, bah!, co'esses olhos verde-guampa
Que atravessam o coração e causam dor
Não haverá par pra ela neste pampa!"

"Ela não se casará, infelizmente,
Mas não te preocupes que o amor
Será desta alma um bom servente..."


03/01/2007

O punhal nas águas (de Alma Welt)

2

Com meu Rôdo como sempre mergulhei
No poço da cascata esta tarde
E nas águas transparentes encontrei
Um punhal de prata de "compadre",

E o mano diz ser lance muito antigo
Que fazia um "gaucho de honor"
Que tivesse sido salvo por amigo
Cuja arma tivera mais valor.

E lembrei-me então da narrativa
De um velho boiadeiro meu vizinho
De como o pai deixara a vida ativa

Por ter ficado eterno devedor
De um que de seu filho era padrinho,
E salvara de si mesmo em dor de amor.

(sem data)
____________________________

Nota da editora

Este soneto Pampiano me pareceu de sentido não muito claro. Alma por sua paixão pelo Pampa, conhecia bem os costumes gaúchos, mas por vezes narra coisas obscuras, costumes e tradições que não encontrei meios de conferir. É verdade, porém que não tenho a entrada e o trânsito que ela tinha nos ambientes e na intimidade dos peões. Entretanto encontrei dentro de sua arca um punhal de prata antigo, magnífico, todo lavrado, que pode ser esse do soneto, encontrado no fundo do laguinho da cascata. (Lucia Welt)

Pedindo emprêgo (de Alma Welt)

1

O peão batendo esporas se achegou
Tirando o chapéu mas sem modéstia,
E pra justificar que o tirou
Com rubro lenço secou a alta testa:

"Buenas, comadre, com quem falo?
Preciso falar com o patrão,
Venho vindo de lá da São Gonçalo
Onde dei de prancha num poltrão

Que sem competência ou a machesa
Perante o povo, a Pampa e o pampeiro
Quis tirar-me a china e a realeza.

Mas parece que falo com a rainha...
Poderás ver que sou bom cavaleiro
E mantenho minha faca na bainha."

10/07/2006