quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O gaucho* (de Alma Welt)

O Pampa não tem franjas nem limite
E se estende bem além do horizonte
Onde vive o gaucho e sem desmonte
O Martín Fierro em si nenhum demite.

Na ondulada planura destes pagos
Como a manta de um charque visceral
Os peões são profetas e são magos
De uma oculta confraria de bagual

Cuja honra ou altivez é a grandeza
Do ser, embora às vezes confundida
Com a simples bazófia da macheza.

Mas se acaso recusares um convite
Para mais uma rodada de bebida,
Saca luego teu punhal... e não hesite.


06/05/2004


Nota
*gaucho- pronuncia-se "gáltcho", que é o gaúcho castelhano, e que é como comumente se diz no Rio Grande na zona de fronteira.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Reminiscências farroupilhas (de Alma Welt)

Tantas vezes, vagando pelo prado
Eu sinto aquela estranha nostalgia
Desta mesma pradaria em outro fado,
Que esqueci, e que outrora percorria

Num tempo remoto, entre guerreiros
De bombachas e espadas, e lanceiros.
Então penso que na saga farroupilha
Estive mais pra vivandeira do que filha.

Ah! Como eu amava o italiano,
E como admirava a brava Anita!
Por eles fui lá atrás por mais de ano...

Todavia em flashes de memória
Me avisto junto a ele e a favorita,
A contar ao par mais de uma estória...

(sem data)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

“O tempo e o vento” (de Alma Welt)

(para Érico Veríssimo, in memoriam)

Por expressar o pampa, a minha terra,
Raízes fundas lancei de umbu-pampeiro,
Aquele grande da colina, sobranceiro,
(que nada mais me ceifa ou me desterra)...

Eu e a terra temos laços, somos um
E a planura se reflete em minha mirada
A buscar no horizonte como um zoom
A razão de ser poeta e... desvairada.

Mas tudo que me cerca está lançado
Num livro de registros imanente
De sonetos como flores do meu prado.

E se chegar um tempo sem memória,
Estarei plana e vasta em minha mente,
E o minuano há de contar a minha estória

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A queda livre (de Alma Welt)

A montanha subi nada hesitante,
Eu, que venho da terra da planura
E ali tenho a vertigem do rasante
E corro numa espécie de loucura.

Nos prados quero alçar-me e voar
Com o pampeiro e seus abismos
De horizonte e seus ocultos sismos
Que são despenhadeiros do olhar...

E me vi subindo alto, muito alto,
Rumo ao pensamento sempre virgem,
À era em que começou meu salto.

Pois sinto-me viver em despedida,
Espírito que almeja sua origem
Na grande queda livre que é a vida...

25/08/2004

O Sangue do Poeta (de Alma Welt)

Quando guria um tonel eu vi jorrar
O vinho pela relva em catadupas
Quando um peão com outras culpas,
Com o machado rachou-o a gritar:

“Eis de volta o sangue desta terra!
E logo, igualmente, o meu, verão.
Mas antes verterei de um que aberra
E não merece o amargo que lhe dão!”

E naquela tarde houve o embate
Na sinistra colina do enforcado
Mais regada de sangue que de mate.

E eu, que tudo em volta absorvia,
Jurei jorrar por conta do meu fado,
Meu sangue pela vida e a Poesia...

(sem data)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Versejando (de Alma Welt)

Esta ânsia dos versos na guria
Não foi ignorada desde a infância
Pelo povo tolerante desta estância,
Que vê jorrar tal fonte de poesia:

“-Essa prenda põe a fala no tinteiro,
Uma palavra jogada assim a esmo
Vira verso como muda o pampeiro
Em haragano ou minuano mesmo”.

“Por isso tome tento, gauchada!
Na digam tonterías, charla à toa ,
Que o que ela pega... é que revoa.

Mas quando ela recita pr’um gaudério
O amargo se refina, o mate côa,
E tudo fica claro ou... um mistério!”

(sem data)

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O cavaleiro (de Alma Welt)

Pelas noites vinha o cavaleiro
Armado de fuzil e cartucheira,
No peito, cruzada, a bandoleira
E na cintura uma faixa de toureiro

Com o punhal de prata e bombachas,
O chapéu era pequeno e dobrado,
Tinha fileiras de bordadas tachas
Na frente, e aos ventos do meu prado.

Mas ele cavalgava sem um senso
E mirando-me assim ele apontava
Mas passando por mim arremetia

No louco rumo do nevoeiro denso
Onde por encanto ele sumia
Enquanto o véu do tempo se fechava...

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Seis Sonetos gaúchos de Alma Welt

Acabo de descobrir estes seis sonetos da Alma, inéditos, manuscritos num pequeno bloco:


Névoas (de Alma Welt)
1

A neblina que paira sobre a estância
A revela em sua falsa letargia.
Dois séculos de espera e de constância,
Lhe fizeram firme e cega companhia.

Quem chega ao casarão e suas soleiras?
Que esporas já retinem na varanda?
Que olhos doces de casadas e solteiras
Lacrimejam e se abaixam como manda?

Na névoa revivem os áureos tempos,
Os risos e esperanças se renovam,
Ainda não se contam contratempos...

No salão Anita entra, e Garibaldi,
E talvez esta família já comovam,
Que aqui não haverá quem deles malde.

(sem data)
________________________________

A prenda (de Alma Welt)
2

Sou guria orgulhosa deste Pampa
Que ousa cantá-lo em verso e prosa.
Que digam que a caixa só destampa
Quando os grandes fazem sua glosa!

Evocando a valente farroupilha,
Os maiores já contaram seus revezes,
Mas não com a candura de uma filha
Como eu que a espero tantas vezes

Na soleira desta casa tão vetusta
E ilustre em sua anciã modorra
Que nada faz crer que um dia morra.

Ostentando pelo menos um punhal
Reencontro Anita e não me custa
Galopear junto dela o meu bagual...


As Naus (de Alma Welt)
3

Leiam estes meus versos, ó futuros,
Não despendia assim tanta energia
Em rimas, em palavras de poesia,
Não quisera eu transpor tais muros.

Não estaria brincando no serviço
Ao inventar assim tantos motetos...
Há muito notariam meu sumiço
Aqueles que invejam meus sonetos

Se não fosse aquele ilustre clero
De farrapos e de homens como Netto,
Escoltando-me ao meu verso completo.

Mas como Anita se lhe falta o italiano,
Vejam, nos meus versos eu lidero,
E arrasto naus em meio ao Minuano...

_____________________________

Os errantes (de Alma Welt)
4

As ocultas trilhas do meu pampa
Conduzem ainda ao meu portão,
E espectros saídos de sua campa
Assombram mesmo agora o casarão.

Não busco exorcizar ou demovê-los:
As velas são porque os quero bem
E procuro com meus versos comovê-los
Embora não me sinta sua refém.

Mas compartilho sim, a solidão,
De almas que malgrado sua paixão
Ainda erram e deixam suas prendas.

Eu mesma, a esperar Rodo, meu irmão
(que este vaga vivo em outras sendas),
Sou a novilha de um pródigo marrão...



A cigarra (de Alma Welt)
5

Quando chega o tempo das cigarras,
Eu que trabalhei como a formiga
Num romance, soltando as suas amarras,
Nem por isso dou ouvido à sua intriga.

Sou da raça daquela cantadora
E trabalhar pra mim é eufemismo.
Cantar, cantar, mesmo que amadora
Na glória do meu diletantismo!

Isso o é que faz feliz a pampiana
Sem os remorsos que me cobra
A lembrança da dura Açoriana...

Malgrado este prazer que quase aberra
Cantar, cantar a alma desta terra
E seu cenário ilustre... é minha obra!

_________________________________

A Noviça do Pampa (de Alma Welt)
6

Olho o meu cenário de tal modo,
Que feliz por existir, como noviça
Eu abrindo os braços rodo e rodo
E agradeço isto ser pampa e não Suiça.

Meus avós aqui chegaram por acaso?
Não creio como creio no destino,
Embora misterioso, no meu caso...
Por quê o cabelo ruivo e o pêlo fino?

Esta herança germânica que teima
Em me deixar nostálgica do gelo
Que por aqui a geada, apenas, queima...

E esta pele tão alva como um halo
Que os gaúchos me querem ver o grelo
Apostando que é rubro ou muito ralo...

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O Diapasão (de Alma Welt)

Eis-me aqui, poeta deste prado,
Senão do povo, por certo desta estância
Em que o peão, ao menos à distância
Se mistura, contente, com seu gado.

Sim, porque o gado é dele mesmo
Enquanto tangido na coxilha
E não importa a posse da novilha
No meio da boiada, assim a esmo.

E eu também sou parte, mera, então,
Canora deste mundo que me molda
Como uma andorinha no verão

Emitindo a nota mestra da canção,
Como voz que de perto não se amolda
Mas é grito de alegria e... diapasão.

(sem data)

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Post Mortem (de Alma Welt)

Peregrina a vagar nas pradarias
Eu me tornei a Alma do meu Pampa
E os gaúchos em suas montarias,
Reverentes vêm até a minha campa

E apeando depositam um raminho
De flores do meu campo em primavera,
Ou dos seus amargos um saquinho
Antes de seguirem pra Rivera

Onde o prado encontra os castelhanos
Que outrora ferozes combatemos
E que agora na verdade tanto amamos

E temos como símbolos do humilde
(pelo menos os fiéis que recolhemos),
Corações como o Galdério e a Matilde.


(sem data)

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A lição do guarani (de Alma Welt)

Permanecer fiel à vida e aceitar
O destino segundo se afigura
É tarefa principal da criatura
Nascida pra servir e para amar.

Eis a lição profunda que aprendi
Não de antigos mestres do oriente
Mas de um simples velho guarani
Que por aqui parou humildemente

Contratado de meu pai como peão
E que na charla durante o anoitecer
Limitava-se a sorver o chimarrão,

Em silêncio no meio das risadas.
Um só desejo seu, foi ao morrer:
Posto a mirar estrelas tão amadas...


(sem data)

domingo, 5 de julho de 2009

Posteridade pampiana (de Alma Welt)

Estarei por aqui por muito tempo
Nestes prados e sendas ancestrais,
Vagando nas noites estivais
Ou mesmo cavalgando contra o vento,

Esse frio Minuano que é meu rei
E soube das minhas ambições,
Dos sonhos que urdi e os que herdei
Dos godos meus avós e dos peões,

Em brios carregando em suas selas
A herança eterna farroupilha
Que anima o casarão e acende as velas

Que aqueceram de mim mesma a vã vigília
Repleta das lembranças de uma vida
Tão ardente e em poesia consumida.

07/01/2007

quinta-feira, 18 de junho de 2009

O cavalo de fogo (de Alma Welt)

Por aqui o cavalo vai sem meta
Todo em chamas a vagar na pradaria
E me lembro do outro, o do poeta
Lima que seu livro incrível lia.

E hesitamos, eu, Rodo e Galdério
Em segui-lo à distância pela noite
Pois seu rastro deixado como açoite
É como aquela luz de cemitério,

De santelmo, como dizem marinheiros
E o gaucho que se esvai em pleno pampa
O avista nos momentos derradeiros

Quando segurando o ventre rubro,
E da coxilha a galgar última rampa
Segue o íncubo cavalo que descubro...

(sem data)

terça-feira, 16 de junho de 2009

Dias tristes (de Alma Welt)

Dias tristes do meu pampa, "dias tristes
Como sentir-se viver” disse o poeta,*
Quando abandonávamos os chistes
E tentávamos deixar a vida quieta

E quase hibernados concentrando
Os nossos sentimentos e amores
Na espera paciente de esplendores
Que nos aguardariam triunfando.

E em silêncio vagava com meu Rodo
Embrulhados nos palas, mateando,
Evitando sendas calvas e seu lodo.

E então se nos pegava o minuano
Eu, aninhada em meu irmão, e tiritando,
Poderia assim viver por todo um ano...


(sem data)


Nota
* ... "dias tristes como sentir-se viver"- citação de um verso de um poema de Fernando Pessoa.

domingo, 14 de junho de 2009

Pássaros migrantes (de Alma Welt)


Pássaros migrantes- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 50x60cm, coleção Ricardo Meirelles de Faria, São Paulo, Brasil

Pássaros migrantes do meu sonho!
Eu os avisto a voar em formação
A caminho do Norte e sua canção
Que conheço só do que disponho

De livros e poemas nas estantes
Desde que era a guria tão curiosa
Projetando vagar mundos distantes
Talvez como escritora já famosa...

Me alce, ó bando, e leve com você
Nesse vôo lindo em esquadrilha
Com formato sugestivo de um “V”

Do qual não almejo a liderança,
E humilde seguirei à maravilha
O sonho de que a Alma não se cansa...

(sem data)

O embuçado (de Alma Welt)

Galdério, ó Galdo, o que é aquilo
Que vimos embuçado pela estrada
Quando íamos a passo bem tranqüilo
E então me vi sobressaltada?

“Alma, patroinha, não é nada,
Aquele não é senão Judas Leproso,
E a sineta de som meio lamentoso
Ele agita pra afastar a peonada,

Que de longe lhe deixa o de comer
Pois dinheiro não lhe querem pôr na mão,
Que outros não iriam receber...

E a pobre alma penada é intocável,
E morrerá sem que jamais nenhum peão
Le mire a face morta e deplorável.”

(sem data)


Notas
Acabo de descobrir este notável soneto na arca e embora percebendo-lhe o nítido teor simbolista, impressionada fui perguntar ao Galdério se esse episódio realmente acontecera, se ele se lembrava disso... Galdério confirmou dizendo: "Patroa, si Alma lo ha escrito, es verdad."
Jamais saberei definir os limites entre realidade e invenção no mundo da Alma...

Le mire- escrito assim mesmo, como falam os peões por aqui.
(Lucia Welt)

sexta-feira, 12 de junho de 2009

A Canção do guarani (de Alma Welt)

Entre os nossos peões havia aqui
O Solano olhado assim de esguelha
Pelos outros por ser um guarani
E bem mais calado que uma telha.

Também não se encaixava no telhado
E não por trabalhar errado ou menos,
Mas por suposto olhar de mau-olhado
Ou sua importância de somenos.

Então experimentei me aproximar
Para talvez lhe dar outro destaque,
Uma amizade buscando semear,

Semente que Solano em solidão
Levou, fugindo só com o almanaque
Em que eu lhe dedicara uma canção...

(sem data)

terça-feira, 9 de junho de 2009

O haragano e o minuano (de Alma Welt)

O haragano é uma força deste prado,
Irrupção vital e alegre vento
Como fora verão, sem o tormento
Do nosso minuano, o outro lado

Do pampa quando mostra seu semblante,
Gélida, implacável e feia cara...
É então que ess’ outra face nos prepara
Para o longo inverno, duro amante.

E então acolhemos o monarca
E não o usurpador, embora feio,
Com nossos grossos palas e o mateio.

Mas, bah! quando ao açoite a nave geme,
No salão deste sobrado e minha arca
Lanço versos qual se ainda houvesse leme.


09/04/2004

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Memórias farroupilhas (de Alma Welt)

Pelas trilhas em volta do sobrado
Que se eleva sobranceiro na planície,
A fachada como a face de um barbado
Com sua decantada esquisitice,

Recoberta pela hera e não grisalha
Conquanto mais vetusta que a do Vati,
E que sobe a parede até a calha
Com sua textura cor de mate,

Eu perambulo nos dias e nas noites
Procurando senhas e vestígios
Dos antigos farrapos e prodígios

Que me são anunciados por murmúrios,
Gemidos de cilícios, seus açoites,
Os vôos da memória e seus augúrios...

17/11/2006

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Os Tempos e os Ventos (de Alma Welt)


Crepúsculo no Pampa de Alma Welt- óleo s/ tela de Guilherme de Faria


Inolvidáveis tardes do meu prado
Quando em silhueta e uma aura
O adeus deste poente agraciado
O rubro dos cabelos me restaura

E junto ao grande umbu frondoso
No alto da colina em pleno pampa
Me vejo tal qual aquela estampa
Do vento que levou o nosso gozo

E então retorno e subo ao casarão
Que anoitecido desperta suas memórias
Como guris a escorregar no corrimão

De seus jovens sonhos revividos
De outros poentes e outras glórias
De tempos e ventos esquecidos.

(sem data)

sábado, 30 de maio de 2009

Largo al Factotum* (de Alma Welt)

Galdério, factotum desta estância,
Filho dileto da banda oriental*
Do Pampa e de sua circunstância*
Com sua fala um tanto gutural

Tem como uma espécie de mistério
O nome que, entre nós, ele detesta
Por ser ele confundido com gaudério*
Embora não ostente em sua testa

Pois é gaucho do trabalho como poucos
E apesar do desrespeito inicial
Impôs-se com rigor e brados roucos

Pois, irmão mais esperto da Matilde,
Tornou-se o paladino de um graal*:
Alma viva, nem Rosina, nem Brunhilde...*

(sem data)

Notas

Acabo de encontrar este curioso soneto inédito na Arca da Alma, que faz uma homenagem ao nosso administrador, charreteiro, motorista, emfim, o "faz-tudo" aqui da nossa estância desde que éramos piás, e sua irmã, a nossa querida Matilde, nossa babá.

* Largo al Factotum- título da famosíssima ária da ópera O Barbeiro de Sevilha, de Gioacchino Rossini. A expressão significa : "Abram alas ao Faz-tudo"

*banda oriental- o Uruguay

*Pampa e sua circunstância- Trocadilho com a famosa Pompa e Circunstância , obra orquestral solene de Edward Elgar

*gaudério- expressão gauchesca que designa um tipo sem eira nem beira, fanfarrão, vagabundo e jogador de truco. Às vezes os gaúchos assim se referem jocosamente uns aos outros. Nosso administrador e fiel amigo Galdério não gosta de ter seu nome (com l) assim confundido por galhofa.

* gaucho- assim, sem acento é como o próprio Galdério, que é uruguaio, se auto-designa e aos otros peões. Pronuncia-se "gáltcho".

* paladino de um graal- A fidelidade e dedicação do Galdério à nossa Alma o tornaram um verdadeiro "chevalier-servant", ou cavaleiro andante da sua amada "patroinha" que é para ele um graal, isto é, sagrada...

* Alma viva, nem Rosina nem, Brunhilde... - curioso verso que alude ao personagem do conde Almaviva, que é apaixonado por Rosina no O Barbeiro de Sevilha e adota o nome de Lindauro para se apresentar ao tutor dela, Bartolo, que a mantém prisioneira e quer casar-se ele próprio com a sua tutelada, por dinheiro. Com a ajuda de Fígaro, o barbeiro "faz-tudo" que aí se torna alcoviteiro, o conde Almaviva conseguirá no final casar-se com sua amada. Quanto à Brunhilde, essa é personagem do Anel dos Nibelungos, a grande saga germânica da ópera de Richard Wagner. Alma quis dizer que ela não está nem para a heroína burlesca de Rossini, nem para a solene walkíria Brunhilde de um Wagner da ascendência germânica dos Welt, mas mais para uma "Alma viva", ela mesma, poetisa-heroína do nosso pampa. (Lucia Welt)
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quinta-feira, 21 de maio de 2009

Esta noite me sento à lua cheia (de Alma Welt)

Esta noite me sento à lua cheia
Orgulhosa a matear entre os peões
Ouvindo as estórias de peleia
E os chistes, as risadas e as canções

Que correm em nossas veias aquecidas
Pelo mate e o prazer de pertencer
A estas pradarias esquecidas
Pela História que ficou a nos dever

Desde que firmou-se espúrio acordo
Com os imperiais que derrotamos
Segundo conta agora o mano Rodo

Entre gargalhadas e altos brados
Que saúdam os bravos pampianos
Que fomos e ainda somos nestes prados.

(sem data)


Nota
Acabo de encontrar este soneto que pertence à veia "gauchesca" da Alma. A Poetisa realmente adorava essas vigílias de bivaque, com a chaleira a chiar sobre a fogueira, entre os peões mateando o chimarrão, acompanhada ou não de Rodo. (Lucia Welt)

sábado, 18 de abril de 2009

O ninho da Salamandra (de Alma Welt)

340

Iremos lá, àquele Cerro, meu irmão,
Como fomos juntos às Missões,
Sete Povos, lembra? num verão,
Quando a lenda nos tocou os corações.

Mas ao Jarau iremos delirantes,
E assim encontraremos o caminho
E chegaremos à sala dos diamantes
Onde a Salamanca fez seu ninho.

E seguiremos, eu sei, e não malditos
Pois não somos movidos por ganância,
Mas pela graça de nossa leda infância.

Quanto ao ouro e o poder, estes gigantes
Não nos poderão deixar aflitos,
Que o tesouro vive em nós e vem de antes.

14/10/2006

sábado, 11 de abril de 2009

O Labirinto do Minuano (de Alma Welt)

Encontrei a passagem numa estante
Da fiel biblioteca e nosso gozo
Aqui no casarão, que num instante
Afigurou-se um labirinto perigoso.

Esta noite irei me aventurar
Pelo dúbio corredor mas instigante,
Não deixando todavia de me atar
À ponta de um novelo de barbante,

Mas temo que a passagem, por secreta,
Levará a imponderável metaplano
Que por certo nunca foi a minha meta,

E no centro do sulino labirinto
Estará o minotauro: o Minuano
Que, sim, me levará, eu bem o sinto.

03/11/2006


Nota
*Minuano- Nome do vento típico e famoso das planícies do Pampa. Este vento frio e veloz se insinua sibilante pelas frestas das portas e janelas fazendo cair de súbito a temperatura, enregelando e assustando as pessoas. Alma tinha grande temor e reverência por este vento, que quando soprava a deixava fora de si, histérica. Ela chamava o minuano de "rei Mino "e aterrorizada gritava que ele vinha buscá-la. Apavorada, assisti algumas vezes minha irmã perder o controle e debater-se no chão em convulsões quando soprava este vento terrível. Garanto que minha irmã não era epilética, mas sim hipersensível. (Lucia Welt)

domingo, 15 de março de 2009

O navio na pradaria... (de Alma Welt)

Eu canto o amor em sua constância
Nascido ainda guria nesta Alma
E que se acha inscrito em minha palma
Assim como as sendas desta estância

Que demarcam o embate farroupilha
Entre os rubros lenços e o quepe
Ou aquele amor de maravilha
Entre a bela Anita e o Giuseppe.

Assim, creio, meu amor tem o aval
Da força e do sangue pelas trilhas
De um estranho e pitoresco show naval

Quando o bravo Garibaldi carreou
Seu navio por entre ondas de coxilhas
Como carrego o amor que me tomou...

(sem data)

Nota
Acabo de encontrar na arca este soneto verdadeiramente épico, em que Alma compara o seu amor proibido (por Rodo, seu irmão) com a saga do navio de Garibaldi, arrastado pelos farroupilhas pela pradarias, passando por esta estância em que, um dia, muito depois, viveria a famíla Welt e uma grande poetisa que confundiria o seu amor com o passado glorioso destas terras. (Lucia Welt)

domingo, 1 de março de 2009

Orgulho Pampiano (de Alma Welt)

Por estas pastagens do meu Sul,
Caminhei, corri e cavalguei
Como quem singra em verde o mar azul,
E como uma nereida me lancei

Nas ondas celebradas das coxilhas
Semeadas além de esparsas frondes
Dos umbus solitários, como ilhas
Na névoa da manhã que busca os “ondes”:

Os lugares onde entrar e então dormir
Para a face pampiana levantar
Renascida, vital, úmida e a sorrir...

Eis como nasci, vivi e desfrutei
Do imenso dom de tanto amar
As graças que orgulhosamente herdei!

(sem data)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A Flauta de Pã (de Alma Welt)

Em meio à pradaria esta manhã
Topei um peão chamado Acácio
Que como um pastor do antigo Lácio
Tocava estranha flauta: era de Pã.

Atraída, perguntei-lhe se sabia
Que essa flauta antiga assim chamava
E que com ela Dionisos comandava
Os cantos, as danças e... a orgia.

Então o pastor, desconfiado,
Olhou-me suspendendo o seu trinado
E respondeu com a charla de gaudério:

“Patroa, esta gaita é de família,
Nunca tocou só pr’uma guria,
E meu avô a ganhou num monastério.”

12/05/2005

sábado, 17 de janeiro de 2009

Testamento "gáltcho" (de Alma Welt )


El gaucho (pintura de F. Reilly)


Por estes belos pagos do meu Sul
Que me foram dados de cenário
E raízes sob o imenso toldo azul
Que é o teto do meu templo imaginário;

Aqui onde os “gáltchos” machos são
Reis de um reino todo em seu cavalo,
Nos limites da honra e da razão
Que os leva a transpor o imenso valo

Que existe entre domínio e dominado,
Entre o ser de escolha e o malfadado
Tantas vezes alcunhado de “gaudério”;

Aqui cresci, me alcei, fui poetisa
Votada ao meu próprio mistério,
De meu próprio destino a pitonisa!

15/01/2007


Nota
Acabo de descobrir na arca dos escritos da Alma, este "testamento", que percebi ser inédito (ela já escrevera outros testamentos). Este me pareceu especialmente significativo, pois revela o grau de consciência que ela tinha de seu singular destino e grandeza. Sim, o mistério foi nota dominante em sua trajetória, pois tal dimensão de beleza numa vida vivida em permanente dimensão poética não é corriqueiro na história da literatura ou das artes. ( Lucia Welt)
*gáltcho - fonético de gaucho, como os "castelhanos" (uruguaios e argentinos, nossos vizinhos de "la Pampa" pronunciam o nosso "gaúcho". Alma normalmente se referia assim aos nossos peões.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Alma dos peões (de Alma Welt)

Eu vinha pelas sendas da campina,
Correndo como sempre de alegria
Com aquela risada cristalina
Que tem desses peões a simpatia.

Mas eis que fui parada em pleno prado
Por um deles, o Tomás, gaúcho macho
Com o seu chapéu de barbicacho
Barrando-me o passo, ali, montado.

E apeando da égua, assim, garboso
Logo instou-me a escanchar-me nela
Dizendo:“Dona Alma, ele escapou!”

Que era o touro bravo, perigoso
Que depois eu soube alguém soltou,
Talvez para me ver em sua sela...

28/10/2006